26/08/2007

O como e o porquê


Antigamente quando alguém morria com um cancro os jornais diziam que falecera após «doença prolongada». A palavra queimava os lábios, os Homem evitava-a, como se o seu vocativo fosse em si mesmo um perigo, ou como se o morrer-se dela uma vergonha. Hoje leio no «Jornal de Notícias» que Eduardo Prado Coelho morreu «na sequência de um cancro». Leio ainda que «sofria de uma doença que não lhe permitiu prolongar a vida». O ser humano leitor aprendeu a soletrar a palavra c-a-n-c-r-o. Ante a inevitabilidade que é o morrer-se, resta a curiosidade mórbida do saber como, que os jornais satisfazem. Ninguém se pergunta porquê. Disso continuamos a ter medo, Muito medo mesmo.

25/08/2007

A união mística

«Ho parlato come se il mio stesso fosse innamorato di Dio, di un amore tenero e intimo, se mi avessi sentito avresti detto ’Che ipocrita!’». Consta de uma carta escrita por Madre Teresa de Calcutta, a religiosa de origem albanesa, em 1979, dando conta da angústia de ter deixado de sentir Deus.
É esta união mística que dita os esponsais com Cristo. A perda da paixão torna-se então um segredo, doloroso. No seu caso, a mais pobre das pobres, silenciou-o na parte terminal da sua vida, obrigada por um voto, fiel a um encontro com os desesperados, aquele que Deus parecia ter abandonado.

23/08/2007

Amadeus e Schiller: ainda a vala comum

«Mozart só começa a utilizar o famoso Amadeus (versão latinizada de Theophilus) a partir de 1774 numa carta dirigida à sua irmã (usava também Amadé)».
Aprendi isto no blog «Música nas Esferas», do músico saxofonista Pedro Moreira, a que cheguei a partir do blog sobre alquimia da escritora Yvette Centeno.
O mundo, de facto, só pode ser circular; o ponto de chegada é o da partida!
Retorno pois ao tema da vala comum, sobre o qual escrevi aqui, neste blog, umas linhas mais abaixo. Teria sido o destino de Friedrich Schiller? Talvez!

08/08/2007

A lassidão de arrancar raízes

Uma mão amiga fez-me chegar poemas do José Gomes Ferreira. Um deles é precisamente sobre a arte de saber morrer com aquela mansidão alva de quem se vai de consciência tranquila: «Devia morrer-se de outra maneira. Transformarmo-nos em fumo, por exemplo. Ou em nuvens. Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos os amigos mais íntimos com um cartão de convite para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje às 9 horas. Traje de passeio". E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir a despedida. Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio. "Adeus! Adeus!" E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento, numa lassidão de arrancar raízes... (primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... ) a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se em fumo... tão leve... tão sutil... tão pòlen... como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono ainda tocada por um vento de lábios azuis...».
É um poema. Sai assim, «em linha recta», porque ao copiá-lo desalinhei-o todo. Fica bem. Parece prosa, sendo o mais poético da poesia.