29/07/2007

A vala comum


Milos Forman com o o seu «Amadeus» trouxe à morte de Wolfgang Amadeus Mozart uma dimensão trágica, envolvendo uma disputa mortal com o rival compositor Antonio Salieri.

Baptizado, segundo o rito cristão, como Johannes Chrysostomus Wolfgangus Theophilus Mozart, o compositor austríaco extingue-se, esgotado, aos trinta e cinco ano de idade.

Inumado num dia de temporal, numa situação de miséria, o seu corpo foi jogado para a vala comum, a dos indigentes e abandonados. Reza a lenda que teve por companhia a solitária presença de um cão.

A morte de Mozart é talvez o facto que traz com maior expressão para a dimesão pública universal a ideia de um lugar de entrerramento colectivo e não individualizado a marcar a diferença entre os endinheirados e os mendigos.

Ora em Lisboa, o artigo 16º do Regulamento dos Cemitérios da Câmara Municipal, constante do Edital n.º 60/84, aprovado pela Deliberação n.º 139/AM/84, tomada em Sessão de 1984/09/13, publicada em Diário Municipal n.º 14479 de 1984/09/26, constante a fls. 1643, modificado pela Deliberação n.º 34/AM/90, publicada em Diário Municipal n.º 15863 de 1990/04/26, constante a fls. 766, em vigor desde 1990/04/27, e pela Deliberação n.º 315/AM/92, publicada em Diário Municipal n.º 16370 de 1992/05/08, constante a fls. 1056, em vigor desde 1992/05/11 e ainda pela Deliberação n.º 39/AM/2000, publicada em Boletim Municipal n.º 328 de 2000/06/01, constante a fls. 945 a 946, em vigor desde 2000/06/02 reza que «não são permitidos enterramentos de corpos em vala comum».

Ou seja, ante tal acervo normativo, se o autor da «Flauta Mágica» tivesse morrido em Lisboa, e a História Universal insistisse em que um tal génio tivesse que sofrer a ingratidão de nem ao menos uma campa raza e individual merecer, o corpo ficaria à chuva, à espera que os burocratas, os cangalheiros, os coveiros e os gato-pingados se entendessem com o legislador, para que no fim, folheadas as deliberações, vistos os editais, se concluísse que vala comum é que não. E o autor do incompleto «Requiem», quando finalmente baixado à cova já nem o cão teria por companheiro, cansado o bicho de tanta espera e tanta legislação.

Juntar os sobrevivos

O tema surgiu outro dia numa conversa ocasional: o preço a que estão os terrenos para sepulturas! Depois foi alguém a falar no Eça de Queirós ter estado num jazigo emprestado durante uns tempos. De repente vem-me ao conhecimento que a Livraria Petrony havia editado uma obra sobre Direito Mortuário que trata, entre outros assuntos, os seguintes: remoção, transporte, inumação, exumação, transladação e cremação de cadáveres, agências funerárias, cemitérios, colheita de órgãos e tecidos, princípios de verificação da morte, colheita e transplante de órgãos e tecidos de origem humana, certificação de morte cerebral, registo nacional de não dadores, requisitos técnicos aplicáveis à dádiva, colheita e análise de tecidos e células de origem humana, dissecação lícita de cadáveres e extracção de peças, tecidos ou órgãos para fins de ensino e de investigação científica, dissecação de cadáveres e extracção de peças, tecidos ou órgãos.
Enfim com tanto assunto surpreendi-me ao ler um livro do Wenceslau de Moraes sobre o culto dos mortos e a ter desoberto que hoje é proibida a vala comum, na qual Mozart foi enterrado, tendo no cortejo fúnebre por companhia um solitário cão.

Tudo visto, eis a razão que dita esta blog: ir juntando aqui o que ainda está vivo àcerca do que já morreu.

Saudemos, pois!


Inaugura-se um blog dedicado a um tema natural que é encarado como estranho: a morte.

Tão natural como nascer, morrer é uma forma de permitir à Natureza a criação de novas formas de vida. Estar morto é, por isso, um meio apenas de possibilitar essa reciclagem do ser sem a qual tudo seria eterna e monotonamente igual.

Saudemos, pois, com a alegria, este blog, mortos de riso!